Foste aquele que eu mais amei, em tempos.
Fui aquela que tu mais amaste... em tempos.
Revoltaste-te contra toda a família, toda a vida. Amavas, e continuas a amar, cada um deles; mas nunca soubeste dá-lo a entender a ninguém. Eras (és) um revoltado. Cheio de traumas de infância que não te deixam ser bonzinho e descansado. O álcool e o cigarro foram só uma bengala que tu pensaste que te ajudaria a caminhar pela Vida. Transformaram-se na pior arma: contra ti mesmo, e contra todos os que viviam à tua volta. Felizmente, passados anos e anos e anos, conseguiste largá-las e começar a dar os primeiros passos sozinho, como um autêntico bebé. Sem vícios ou essências que ajudem a fazer decorrer a Vida, a suportá-la anestesiado.
Quando eu tentava desculpar os teus erros com a história da infância e da revolta haviam sempre vozes a dizerem-me que ignorar a Maldade que mora num coração não é a melhor táctica. Mas eu nunca soube acreditar em Pessoas Más... Achei sempre que o mundo era feito de gente boazinha que, de vez em quando, se portava mal. Mais nada. E deve ser por isto que, ainda hoje, me chamam de ingénua...
Ouço a voz da Mãe a contar tantas vezes a mesma história: vínhamos no avião, de regresso dos Açores, e eu disse-lhe 'Sabes Mãe, eu acho que agora já consigo gostar tanto de ti como do Pai...'. Tinha seis anos. E gostava mais de ti do que de qualquer outra pessoa, apesar de te ver seres mau, tantas vezes.
Fui sempre a mais quieta e calada. As educadoras perguntavam vezes sem conta, à Mãe, se estava tudo bem. Todos os meninos do colégio brincavam e corriam dum lado para o outro, e eu só queria ficar sozinha num canto da sala ou do recreio. Eu lembro-me tão bem...
A Mãe foi sempre a mãe e o pai da casa. E o Mano, anos mais tarde, transformou-se no pai, também. Tão crescido, tão bonito... Tão humano.
As pessoas que te conheciam bem diziam 'A filha é a única pessoa de quem ele realmente gosta...'. Eu não achava bonito, mas não deixava de me sentir feliz.
Fomo-nos perdendo, com o passar dos anos. Tu já não és o mesmo, e eu... muito menos. (Embora, muitas vezes, me continue a sentir a mesma menina desdentada que te pedia colo.)
Contrariei-te em muitas coisas, por as saber erradas. Parti sempre de coração apertado, cada vez que fechei a porta e te deixei sozinho e a chorar, ao mesmo tempo que me pedias para ficar. Defendi sempre a Mãe e o Mano o mais que pude. A Mãe defendeu-me sempre a mim e ao Mano o mais que conseguiu. O Mano continua a defender-nos sempre o mais que pode, e ainda mais um bocadinho. E eu já nem sou capaz de te defender a ti...
És tão nada... sabes? E tanto, ao mesmo tanto. Com tanto para contar, para ensinar. És inteligente e sabe-lo bem. Usas-te disso, tantas vezes... Eu já quis muito ouvir todas as tuas histórias e aventuras, mas cansei-me de esperar.
A única pessoa que realmente respeitavas – o teu Pai – já nos deixou e tens motivos para te orgulhar dele. Como eu não tenho teus.
Já não me recordo sequer da última vez que rimos juntos... Mas recordo-me da última vez que falámos. A última frase foi minha: 'A minha vontade é a de nunca mais olhar para a tua cara'. A minha voz tremia e quase que me falhava, e tu fazias um ar de indignação. Foi há sete meses atrás.
A minha vontade mantém-se a mesma, mas o coração já começa a querer ceder, de vez em quando. Nessas alturas, eu faço questão de me relembrar de tudo e digo 'não, desta vez não'.
A Mãe, às vezes, descai-se. Diz 'és tal e qual o teu Pai...' e, depois, repara no que disse e arrepende-se. Não faz por mal...
Mas é. Somos tão parecidos que dói. E o meu maior medo é, um dia, vir a ser tão má mãe como tu foste pai.
A Tia Rosa, quando me telefona, pergunta por ti e eu digo que deves estar bem... Ela acha que já passou muito tempo e que devia deixar-me de rancores. E não é a única com essa opinião. Mas acho que já não consigo lidar de outra forma com isto.
Pela primeira vez, faço de conta que me estou a borrifar para ti. Podes gritar, morder, rasgar, morrer... que me é indiferente. Faço de conta que estou bem, sem ti, e tu nem chegas a saber que não estou.
Ás vezes, acho que foste para a cova com o teu pai. Morreste com ele, e não choraste uma única lágrima. Eu queria abraçar-te e trazer-te de volta, mas já não sou capaz. Na verdade, acho que nunca fui. Tu é que, antigamente, te davas ao luxo de representar um bocadinho melhor...
A tua tristeza anda-te estampada no rosto. Mas não penses que a minha não existe... Eu é que teimo em escondê-la de ti, para pensares que já nada vindo de ti me atinge.
É que eu queria amar-te tanto, Pai...
Mas eu acho que já não consigo.
Entrei em casa pela porta das traseiras e tu estavas na cozinha. Quando desviei a cortina tinha-te à minha frente e soltaste um 'Bom dia!?', que me apanhou completamente desprevenida. Olhei-te indignada e virei-te as costas, sem dizer uma única palavra.
Enquanto subia as escadas e entrava no quarto, senti o coração a comprimir-se dentro do peito. São os piores momentos... Teres de negar alguém que amas. Sobrepor a razão à emoção. Senti-me a mais Má das Pessoas à face da Terra e fui meter-me debaixo do chuveiro, onde as lágrimas se misturaram com a água bem quente que não parou mais de correr.