29 dezembro 2005

« Depois das nuvens, somos o medo. Debaixo da pele, somos o medo. »

Ficámos a noite inteira acordados, à espera do passarinho que vem de manhã cantar-nos ao parapeito. Nunca desejámos tanto que ele chegasse…
Deitámo-nos em cima da cama e recusámo-nos a tirar as roupas. Quisemos dormir com os perfumes colados às camisolas e aos cabelos.
Pensámos melhor e nem chegámos a querer dormir, para não os esquecermos. No dia seguinte já nada sabe da mesma forma. Não quisemos dormir, para não termos de chegar ao 'dia seguinte' inconscientes de tudo. Para não termos sequer de chegar...
Fechámos os olhos e chorámos, e sorrimos. Agarrámo-nos a um coração de fingir e recordámos cada letra e cada som. Sentimo-lo a escorregar-nos pelas mãos e chorámos, sem poder fazer nada.
Procurámos morangos, debaixo da cama e dentro dos roupeiros, e a única coisa que encontrámos foi um quispo. Vermelho, também... Aproveitámo-lo, apesar do efeito não ser o mesmo. Aqueceu, mas os sorrisos não foram muitos.
Passámos a noite inteira acordados, com um quispo vermelho a aquecer e a salientar os perfumes e as saudades.
Quisemos corpos, quisemos gente. O vazio assusta. A falta de passarinhos a cantar nos parapeitos, também...
Pegámos num espelho e ficámos a olhar para um reflexo de olhos verdes. Olhámo-lo e falámos-lhe. Ele não reagiu.
Olhámos para o espelho durante tanto tempo que ele nos roubou a alma, como nas histórias de encantar. E os olhos verdes passaram a cinzento. Cada vez mais cinzentos e baços.
Quisemos sair pela janela, ao encontro de outros braços que não os nossos. Mas descobrimos o corpo como um peso demasiado forte, incapaz de ser erguido.
Descobrimos um coração em forma de A, dentro de nós. Abraçámo-lo e nem fomos capazes de entender.
Leve leve leve...
Quisemos chamá-lo e dizer-lhe coisas que não se sabem escrever. Quisemos chamá-lo e não lhe dizer nada. Tocar-lhe e pedir-lhe para ficar.
' Um dia, tens-me sempre que quiseres. E pedes para eu ficar e eu fico. '
Quisemos fazer daquela noite esse dia.
Quisemos sentir a porta a abrir-se e alguém a movimentar-se no escuro.
Ficámos a noite inteira acordados, à espera dum passarinho que nunca chegou.
Não fechámos os olhos. Nem vimos o 'dia seguinte'.

(O erro? Bateram-nos à porta... E eu abri-a.)



/me on (a falta d)o canto dum passarinho no parapeito...

10 dezembro 2005

tudo começa com a música.

- posso cantar-te uma música?
- podes.

e é assim que tudo começa. com uma música.
nem que seja na minha cabeça. nem que seja pelos meus lábios gretados e pela minha voz cheia de falhas. nem que seja pelo ritmo dos teus dedos a baterem na minha mão.
se te calares consegues ouvir... cala-te. ouve. vês?
tudo começa com uma música.

a música importa, claro que importa. já passou a altura em que a música não tinha qualquer importância. agora, lê-se corações pelas letras das músicas que guardam.

deviam matar-me os olhos, sabes. e os pés, que caminham sempre para o lado errado.
e a voz. deviam matar-me a voz. para não poder cantar nunca mais.
para nunca mais fazer começar.

mas há sempre mais uma guitarra. há sempre mais uma nota perdida. e há sempre mais uma mochila com vozes cosidas e remendadas.
há sempre mais uma melodia colada aos ouvidos.
é aí... onde tudo acaba e (re)começa.

deviam matar-me os sonhos, sabes.
deviam coser-me os ouvidos e costurar-me o coração.
despregar as estrelas do tecto e pisá-las, no chão.

mas já não há ninguém capaz de tirar a música do repeat...


- gostaste?
- gosto sempre...



/me on The Cure

01 dezembro 2005

' As pessoas que gostam de palavras nunca incomodam... '

Tenho Letras espalhadas em cima da mesa. E não sou capaz de formar palavras com elas.
Dou por mim sentada, em frente à mesa, com as mãos postas no A mais próximo. Há um R ali, ao canto da mesa, mas eu nem o consigo alcançar... (Mas eu nem me consigo alcançar...)
Tenho os olhos postos num amontoar de Letras. Sem ligação ou alinhamento ou ordem, entre elas.
Nenhuma brilha. Nem mesmo o N, de Natal. Ou o L, de Luz.
Letras baças, espalhadas em cima da mesa. E a minha mão a tocar num A qualquer.

As (minhas) Letras nunca tinham pousado antes, na mesa ou no chão. Colavam-se ao tecto, ou às paredes, e ficavam a piscar muito. Até me obrigarem a ir buscar buscá-las, e juntá-las. Às vezes, voavam. E eu tinha de saltar, até as conseguir agarrar. (‘A felicidade não nos cai nas mãos. Apanhamo-la nós.’)
Agora, tenho Letras espalhadas em cima da mesa. E eu nem sou capaz de as ordenar...

‘Porque não deitas essas letras fora, Rita?’
Como se fosse possível deitar-me fora, como se fosse possível deitar-Nos fora...
‘Essas letras fazem doer?’
Não. Faz doer (já) não as saber juntar. Faz doer não entender. Faz doer não saber se se tem de chorar tudo duma vez. Ou se se tem de sorrir tudo o que há para sorrir.
Pontos de interrogação também fazem doer. E finais. Pontos.

Tenho Letras e Pontos, espalhados na mesa. Há um R rodeado de pontos de interrogação, escuros escuros escuros. E há um ponto final vizinho dum A, branco branco branco (frio frio frio...).
Tenho as mãos geladas, coladas ao A mais próximo. Não, não é fixação ou paixão. É só o efeito das unhas pintadas de vermelho. (Porque dizer que, além das unhas, o coração também está pintado de vermelho, é dizer que já nada faz sentido...)

Vermelho foi sempre só mais uma forma de Vida. De gritos e risos estridentes. (‘Estúpidas maneiras de tentar chamar a Vida, quando ela já se escapou, não é...?’)
Que seja.
A importância foi-se embora, juntamente com o brilho das Letras.
As mãos gelaram e já nem o vermelho aquece.
Já nem o guarda-chuva canta.
Já nem a chuva dança...

Vou deixar os pontos e as dúvidas. Os pedaços dum M, amachucado e rasgado.
Vou atravessar a noite e bater à porta que se fechou com um gato preto no colo e um sorriso de despedida.

- Posso entrar...?
- Claro... As pessoas que gostam de palavras nunca incomodam...



/me on Tori Amos - Winter