10 janeiro 2009

Identidades.

I

Alguma vez sentiste o chão faltar-te por baixo dos pés? Já te sentiste literalmente a cair num escuro penhasco sem forma nem fim? É um frenesim gigante que toma conta de tudo o que guardas nas entranhas e, ao mesmo tempo, de tudo o que recebes do exterior. No dia em que me senti formiga tonta nas mãos dos deuses, tinha vinte anos quase feitos. Era jovem, mas só nas fotografias, que mostravam um rosto limpo, ainda sem rugas. Em tudo o resto, era velha igual às que fumam cigarrilha e relembram o passado com uma eterna nostalgia. Como só algumas mulheres o são uma vida inteira, desde o berço. Portuguesices, chamam-lhe. Sou capaz de dizer que esse estado me assolou ainda no ventre de minha mãe. Quando cheguei, trazia um sorriso rasgado, que ainda hoje conservo, e que só serviu de vaidade a quem me carregava no colo. Por dentro, um vazio gigante acompanhava-me para sempre.
Amava e repudiava em silêncio. No começo da minha vida adulta, deixei-me fascinar por um homem quase vinte anos mais velho, pai de dois filhos. A vida é assim, brinda-nos com estes toques de incasualidade e deixa uma plateia toda, de camarote, a observar-nos, à espera de ver o final que daremos ao episódio. Fiz desse fascínio segredo, durante um tempo que pareceu não ter fim, e contentei-me apenas com as histórias de vida que ele me passava horas a relatar, com as festas que ele me fazia no cabelo e com o cuidado com que me dava umas bebidas efervescentes horríveis de tão amargas, quando eu já tinha bebido demais ao fim da noite. Até ao dia em que ele me apareceu com o melhor sorriso e um beijo por oferecer. As cores despertavam-me o interesse, ainda naquela altura, mas não foi o verde rubro que trazia nos olhos que me cativou; foi a mistura de cores que se lhe enrolavam no discurso, enquanto falava das suas fugas ou da maneira como, a azul celeste, me dizia: faz sempre apenas aquilo que amas, tenhas de ir para onde for.
Revelei-me, desde cedo, criança ingénua perante as teias mortíferas dessa mágica atracção que liga homens e mulheres. Hoje, sei que o conforto encontrado nas palavras e nos gestos de outro não são mais que uma arma usada para fugir à dureza do mundo. E nós gostamos dessa cegueira que a condição de romance nos traz, e queremos sempre refugiar-nos nela, quando apetece um sítio melhor onde descansar.
Nos tempos que correm, já nada me obriga a segredos. O amor ou desamor, estampo-o em voz e olhares. Pouco há a perder, agora que já quase tudo se perdeu. Sou das que viveram a ferro e fogo, com a vontade de devorar todas as parcelas de vida. Cada paixão era a definitiva, sempre com a mesma entrega e os mesmos desejos de engolir cada homem em suor e lágrimas. Quando as tentava fazer durar, pela crença dos dias seguintes, acabava sozinha, sentada no cadeirão de verga com a minha velhice de sangue e um copo de vinho. Cada ser que via sair da minha vida, provocava-me um sofrimento feroz, que eu não sabia como evitar, e que parecia não ter retorno.
Em criança, pintava e escrevia. Recebiam-me num atelier de fins-de-semana, nas manhãs de sábado, entre telas e pincéis. Nunca tive o poder da oratória, nem nunca gostei de falar, e, afinal, cada um comunica com as ferramentas que tem à mão. Agora sei que procurava naquele reino o caminho secreto da infância que não me coube. Não o cheguei a encontrar, mas procurei-o em todos os traços, até ao dia em que me fecharam a porta e não cheguei a sair de casa. Hoje, tenho pena das cores que não inventei, mas sei que há mil arco-íris que se criam com palavras. Essa possibilidade reconforta-me a dor.
Rabiscava coisas sem importância, no dia em que um homem com barba de três dias e um corte de cinco meses se cruzou comigo, não sei bem em que sítio do mundo. Trazia um sorriso de criança nos lábios e um ar de fera no olhar. A contrariedade seduziu-me de imediato; erro meu, porque nunca mais soube varrer na minha mente aquela imagem. Ria-se com o corpo todo e foi com o corpo todo também que me levou ao lugar onde só quem se dá de olhos fechados, sem medo de nada, pode chegar. Eu era jovem, mas só no corpo que ele percorria sem se cansar. Por dentro, tinha maduro no coração o amor por aquele estranho, desde sempre – verdades puras e lamechas que só mulheres podem sentir.
Como todos os homens, entendia que a praticidade da vida não se podia reger por sentimentos de pertença e sacrifícios em nome de pele ou alma. Mas não foi no dia em que ele desapareceu (levando com ele a única réstia de juventude que, bem no fundo de mim, ainda podia existir) que eu caí em turbilhão nessa fenda profunda que se viria a abrir sob os meus pés. Refugiava-me nos livros, na música ou nos filmes, mas sem nunca ousar ouvir o que ele me deu a conhecer ou ver os finais dos filmes que nunca tínhamos terminado juntos. Passou-se um ano, um ano de jejum, em que quase me esqueci o que é beijar alguém. Quando tinha quase vinte anos, sonhei com o sorriso dele e, sem pensar duas vezes, tracei um plano de vida muito brilhante e com supostas garantias de sucesso. Não havia plano B. No meu imaginário, também não fazia falta, porque a ideia de as coisas não acontecerem, pela primeira vez, como idealizava, não existia. Tinha quase vinte anos e nessa altura quis acreditar que, pela primeira vez na vida, era mesmo só isso que se passava: tinha apenas quase vinte anos.
Não fui infeliz. Cresci rodeada de visões pragmáticas sobre as coisas, o que me fez vulnerável e dependente. Dei-me conta de algumas aparições repentinas e breves em certos momentos, de gente que só surgia por curiosidade. Pretendiam desconjugar-me o coração, para ver de que era feito, e ler-me os pensamentos. Na impossibilidade de satisfazerem as suas dúvidas, desapareciam da mesma forma como tinham surgido. Com o tempo, deixei de dar importância a factos destes, da mesma forma como deixei de crer na raça humana. Mas não posso dizer que tenha sido infeliz. No ombro de amigos descobri o caloroso aconchego e refúgio onde o amor se revelou infértil.
O meu nome guarda por detrás histórias sem sentido e o que é certo é que o peso dum nome acompanha-nos para sempre. Mas dei-me por satisfeita em não me terem dado nome de flor. Podia armar-me em fadista bairrista e dizer que trago em mim todos os nomes de Lisboa; na verdade, carrego o nome de todas as cidades por que passei e me deixei ficar. Houve sempre pianos e violinos em todas elas – tirando a guitarra portuguesa da nossa pátria – e a imagem do contraditório homem-rapaz que se cruzava comigo em todas as esquinas do mundo, muito depois da sua partida. No dia em que perdi o fio condutor do meu cenário e o deixei enredar, foi essa mesma imagem que me apareceu como filme de morte diante dos olhos. Senti-me marioneta frágil de braços caídos, sob vontade dum supremo comediante. Poucos saberão do que falo, porque muitos nunca chegam a pisar o fino chão do profundo e completo desespero, prestes a derrocar.
Fiz vinte anos sem festas nem alaridos. Sem sonhos nem desejos fortes, sem planos de letras nenhumas. Apenas com uma vontade gigante de me desfazer em lágrimas, por cada vez que o telefone tocava. Resolvi que não merecia mais nada da vida, quando já tinha tido tudo e tudo tinha deitado a perder. Relembrar estes tempos, do fundo da minha velhice regelada de sempre, é trazer agora um denso estado ao ar que respiro. Já nada me espanta ou desperta. Já ninguém me faz ter vontade de procurar a criança que não pude conhecer de mim. Sei-me de cor e brindo sozinha. A esperança que ainda me vive na ideia, mora no abraço que ficou por dar àquele que está longe e não volta. Eu podia pedir ao encenador deste acto falhado que me deixasse encontrá-lo de novo e tê-lo a rir em mim. Mas não peço. Porque quem nasce velha para morrer igual, vive para carregar em si todo o peso de ser pouco nos outros. Portuguesices, chamam-lhe.