20 novembro 2005

Chuva.


Andei pelas ruas cinzentas da cidade, com um guarda-chuva encarnado, a chamar pela chuva. As madames que me ouviram a saltitar por entre as pedras da calçada, vieram às varandas. Chamaram-me de tola e comentaram umas com as outras que chuva nesta altura do ano só servia mesmo para lhes estragar os penteados, feitos pelo requinte da cabeleireira do bairro. (‘As pessoas grandes são assim. Não vale a pena zangarmo-nos com elas.’ Pobrezinhas.)

Saltitei entre as pedras até me doerem as pernas, até me doerem os pés. Até estar muito longe de casa e já não haverem madames em varandas ou nuvens em janelas. Saltitei até ao fim de tudo. E como me cheirou a molhado voltei para trás, andando devagarinho...
Andei tudo de volta e continuei a chamar a chuva, baixinho. Como só eu e ela somos capazes de me ouvir.
Voltei a passar pelas madames, que continuavam nas varandas. Mandaram-me para casa, que não é bonito uma menina ficar a andar sozinha pelas ruas cinzentas. Não levantei os olhos das minhas botas e continuei a caminhar devagarinho. E a chamar pela chuva.

Andei por ruas cinzentas, com um guarda-chuva encarnado, até o céu deixar de ser azul. E, à porta de casa, roubei uma flor à vizinha. Daquelas amarelas, do canteiro da frente. Que me perdoem, mas foi ela que chamou por mim! Eu só a libertei da terra, que teimava em prendê-la, e a pus atrás da minha orelha. (‘O amarelo é forte, eu acho.’)

Quis lá eu saber das botas sujas e do jeito cansado! Entrei em casa, sem fechar o guarda-chuva encarnado, que continuava a sorrir para todos. E nem repararam... Mas as pessoas grandes são mesmo assim. Não entendem o sorriso de uma criança, o que se dirá do sorriso de um guarda-chuva encarnado... Eu bem o vi a sorrir. Eu bem o vi a sorrir mais, à medida que o céu deixava de ser azul.
As pessoas grandes não viram. As madames e as nuvens não viram.

Subi até ao meu quarto. Está escuro, porque estive a chamar a chuva. É sempre assim...
Há um buraco no tecto. Há uma árvore crescida, com raízes que rompem do chão. É grande e forte. Num dos seus ramos há um baloiço. Fui eu que o pus lá. Duas cordas que descem do ramo e um banco de madeira fazem o meu baloiço. É giro porque posso ficar a baloiçar-me nele o tempo todo, sem tocar com os pés no chão. Não tem mal as minhas pernas serem compridas, a árvore puxa sempre aquele ramo mais para cima, conforme a minha vontade de voar.
A árvore cresce para lá do meu tecto. Daí o buraco. Fui eu que o fiz, para ela poder crescer. Não me apetecia nada ter uma árvore encolhida.
Os ramos e as folhas e as flores continuam para lá do meu quarto, bem mais para cima do buraco do meu tecto. Já olhei muitas vezes para o alto e nunca consegui ver o fim da árvore. Talvez ela chegue às nuvens. Um dia, tenho de trepá-la para ver onde me leva...

Andei pelas ruas cinzentas da cidade, com um guarda-chuva encarnado, a chamar pela chuva. E ela chegou.
Eu fico sentada por baixo do buraco do tecto, numa das raízes grossas da árvore, que rasgam o chão. O quarto vai ficar alagado e a minha mãe vai aborrecer-se. A culpa é minha. Fui eu que andei a chamar a chuva, até ficar cansada. Mas o guarda-chuva encarnado está tão satisfeito...
Eu também estou. Tenho os cabelos a escorrerem e as mãos geladas. Mas não tenho os pés molhados. O meu pai bem me disse que estas botas eram boas para a chuva.
A árvore começa a cantarolar baixinho. A água rega-a, pelo buraco do tecto, e mais cedo ou mais tarde ela há-de florir.
Eu levanto-me e pego no guarda-chuva encarnado. Danço e giro pelo quarto e ele dança e gira comigo. Sorrimos os dois, e eu solto uma gargalhada ao cairmos tontos no chão.

Tenho uma flor amarela, atrás da orelha, que me diz para não parar.
Tenho um guarda-chuva encarnado que só é feliz quando molhado pela água que cai do céu.
Tenho uma dor no coração que só alivia quando a chuva dos olhos Dele se junta à chuva dos meus olhos...




/me on Yann Tiersen - La Valse d'Amélie
Tixa, na fotografia.