31 maio 2008

Meu querido.

Costumava encontrá-lo na terceira rua, à porta do bar do costume, quando a Lua já ia alta. Ajudava-o a endireitar a gravata e a apanhar um táxi para casa. Ele dizia-me, com a língua já meia enrolada: "Minha querida, tu já sabes que eu sou homossexual.", e sorria.
Beijava-me, mesmo assim, e eu ficava a vê-lo desaparecer rua abaixo, a desejar que existisse alguma alma, em alguma parte do mundo, capaz de o consolar.


Às sextas-feiras, era costume encontrá-lo no Bairro. Só quando ele preferia ter a certeza de que eu não ia ficar por casa, quando não queria deixar o nosso encontro nas mãos desse acaso que nos fazia sempre cruzar um com o outro, me mandava uma mensagem: "Estou à tua espera na Praça Luís de Camões daqui a uma hora."
Sozinha, eu acabava sempre por aparecer. E ele, já com um copo na mão a acompanhar-lhe a espera, abraçava-me como se abraça uma irmã.
Dava-me a mão para atravessarmos juntos o tumulto de pessoas que ocupavam aquelas ruas, oferecia-me da bebida dele (o copo ficava sempre com a marca vermelha dos meus lábios, e ele nunca se importava) e puxava-me sempre para dançar, quando já mal conseguíamos controlar os passos.
Ele falava tanto. Era uma alma solitária, repleta de misticismo, com uma vontade gigante de exacerbar toda a complexidade do mundo. A mim, só me competia a tarefa de o ouvir e deixar descansar.
Acabávamos sempre a noite sentados na pedra da entrada dum prédio qualquer, encostados à porta de madeira. Ríamos, porque, juntos, o mundo em volta não existia. As pessoas que passavam, as vozes que se ouviam, não eram mais do que a doce ilusão dum plano muito longínquo.
Ele pedia-me sempre lume e, ao fim da noite, já me pedia também que lhe enrolasse os cigarros, enquanto me afastava o cabelo da frente dos olhos. Tinha as palmas das mãos mais bonitas que eu já conheci e duas bolas de cristal no lugar de olhos.
Pedia-me que não o deixasse, e tinha uma estranha forma de me convencer sempre a não o deixar seguir sozinho para casa.
Depois de algumas tentativas de conseguir meter a chave na fechadura, lá entrávamos. Eu descalçava-nos e embalava-o, como se faz com as crianças. Adormecíamos na cama de mãos dadas e, no dia seguinte, quando eu acordava, dava com ele já desperto a olhar para mim com um sorriso nos lábios.
"Minha querida..."

Perdi-lhe o rasto no dia em que esta calçada deixou de me saber pregar partidas.
E é desde aí que esta Lisboa está cheia de rostos belos, mas mortos, como recordações que bóiam perdidas no leito do Tejo.





9 comentários:

éme. disse...

:)
Olá Rita!
Pois não perdeste todos os rastos. Sim, esta sou eu.
e,
em Coimbra,
Também há esses encontros-acasos que são propósitos claros de pessoas que se acompanham que, pelo menos num tempo determinado das vidas,
Se encontram!

(olha... talvez algum desses rostos mortos escondam uma vida que tarda acordar... não?)
**
muitos

Sr. Jeremias disse...

E em todos os lugares, todos temos os nossos encontros e reencontros. E, nas nossas cidades todos temos os nossos bairros e as nossas gentes, as mãos e os gestos...

Gosto tanto de escadas. Gosto tanto de mãos...

da.rocha disse...

toda a história bonita... passeada por ruelas lisboetas.. tem de incluir o Tejo... é uma inevitabilidade!

neste caso é o mar das recordações...

no meu.. creio que também!

:)
bacci

Supermassive Black-Hole disse...

achei muito bonito, ainda que não tenha a certeza de ter entendido tudo...

Anónimo disse...

se tu soubesses o q causas às pessoas com o q escreves... se um dia algum escrever sobre a minha vida, quero q esse alguem sejas tu. de certa forma, irias torná-la mais bela.


um beijinho*

telma disse...

a sensação que fico depois de ler isto é optima. os teus textos entram na alma. *

Maria João disse...

Pormenores tão, tão, tão bonitos.

Olá também para ti, Rita (:

*

lou disse...

Bem bonito o texto :D

Clara disse...

Oi,
andava a passear por blogs alheios e deparo-me c este e logo de rajada li este texto. Está muito muito bonito! Hei-de voltar mais vezes.
Abraços,
Clara