27 dezembro 2006

« O meu lado esquerdo... (...) É o lado com que eu choro e com que eu sinto. »


Depois de uma noite de facadas no peito, que te deixa a tremer e a soluçar, sem te deixar pregar olho, recebes um abraço com cheiro a malmequeres e papoilas. Há uma lágrima que escorrega e te desliza pela cara, mas tu depressa a limpas e dizes 'Estou bem...'.
Mas, nessa altura, tu já sabes: não se engana uma Mãe.

Vestes o casaco mais quente que tens no armário. Não é teu, mas sabe melhor vesti-lo sabendo disso.
É dele. Deu-to num dia gelado, porque estavas a morrer de frio (sim, ele tem razão: andas sempre mal vestida). Trouxeste-o para casa e ficou teu, mas fazes tensões de lho devolver no final do Inverno. Fica-te enorme. Tapa-te as mãos e quase que te chega aos joelhos, mas tu ama-lo por isso mesmo.
Metes o capucho na cabeça, enfias as mãos nos bolsos, e sais.

Para ti, nunca um dia esteve tão gelado. Nem nunca uma noite foi tão longa.
As lágrimas são demasiadas para dois olhos só, e caem umas a seguir às outras. Nunca, nunca sentiste tanto: o medo, o frio, a raiva e a morte.
Procuras os phones nos bolsos de trás das calças, mas não os tens contigo. Tens pena. E cantas sozinha, sem música.

‘A Rita é poética.‘, disse uma noite o Gil.
E a única coisa que te dá interesse, quando conheces alguém, é tentar descobrir a sua poeticidade. Há aqueles em que se vê logo, assim que dizem as primeiras palavras, que não vivem da poesia. Nem tão pouco de Letras ou sentidos. Há outros que tentam, mas é só para impressionar. E há aqueles (tão, tão poucos), perdidos em cantos remotos, que transpiram poeticidade. Até hoje, só conheceste meia dúzia de seres assim. E nunca desejaste tanto ter um deles ao teu lado, como nesta tarde.

Os filhos amam os pais. Os pais amam os filhos. É assim que deve ser.
Mas, de repente, já nem nisso pensas. Tens uma dor demasiado profunda no peito para conseguires raciocinar.
Mistura-se tudo.
Choras pelo amor que desapareceu, de quem te fez existir. Choras pelos sorrisos dos príncipes, que já não são capazes de calar os risos das fadas más. Choras por já não seres capaz de lhes pintar um céu roxo e cor-de-rosa, no tecto do quarto, para eles poderem sorrir cada vez que abrem os olhos.

Amas tanto, pobrezinha.
Sentes tanto... O mundo inteiro, dentro do teu pequenino coração.
E amaste sempre mais as fadas e os duendes que não tocaste, do que todos os Homens que se cruzaram contigo nessas ruas e te fascinaram.

Quando finalmente chegas até ele, percebes que não foi uma surpresa agradável. Está admirado por te ver, e nem sabes se é de trazeres o seu casaco vestido. Pedes-lhe, a desmoronar por dentro, que fuja contigo. Basta apanhar um comboio, para se ser feliz. Só precisas dele para partir.
Percebes logo que te vai dizer que não. Ouves umas desculpas no ar, mas não são mais do que isso: desculpas. Por fim, ouves o definitivo não como mais uma faca espetada contra o peito.
Viras costas e desapareces, com as lágrimas a dançarem-te nos olhos.
Sabes que o Amor te devia salvar e ajudar a escapar da morte, e sentes uma raiva profunda de ele, em vez disso, te estar a cavar a sepultura. Queres bater-lhe e gritar-lhe que não precisas de um Amor egoísta, mas já não tens forças. Limitas-te a bater em retirada, com os olhos já mais verdes que castanhos.


(A Rita só precisava de ir até essa estação, onde um abraço quente a espera e lhe quer secar as lágrimas.
A Rita nunca precisou tanto sair daqui e ir até um sítio melhor, com Amor...
É só um comboio. E ninguém a deixa ir ser feliz.)




/me on Clã - Lado Esquerdo

9 comentários:

Sr. Jeremias disse...

E o teu lado esquerdo sabe o que é a razão?

Tiago Ramos disse...

A tua maneira de escrever toca o coração. Sabes por quê? Porque é a tua maneira de sentir: uma forma muito pura.

As estações... Ai, ai..

Su(sana) disse...

Cada vez fica mais claro para mim... tu escreves da maneira que sentes e quem lê sente isso. Escreves realmente bem, mas não tenho muitas palavras para ti, Rita.

Deixo um abraço e o desejo de te ver sorrir. [*]

fi. disse...

oh rita, deixas-me sem palavras!com estes textos!

sabes, também eu quero um abraço quente. mas de quem?

um beijo para ti*

Mariana disse...

Secalhar há outro caminho para a tua felicidade, que não esse combóio. Tens é de acreditar que ele realmente existe e partir à sua procura...

(Quanto à tua capacidade de exteriorizar o que vai aí dentro, eles já disseram tudo...)

Beijinhos.

Anónimo disse...

em cada estaçao que parar, vais la estar comigo. sempre, cá dentro. sempre.

Tiago Ramos disse...

Esse teu lado esquerdo está cada vez melhor...

paulo disse...

O meu próximo comboio vai na direcção contrária; e vou ter comigo a ver se me encontro. Encontro-me contigo no Entroncamento, no dia 31 de Dezembro de 2020, à meia-noite. Leva as passas, eu levo champanhe. promessa.

mariannegreen disse...

estás a crescer. irás nascer de novo muitas vezes. vezes sem conta. até ao fim. e ao nasceres levarás contigo o conhecimento antigo, a experiência vivida...a isto chama-se viver. saber viver. com a dor, a alegria, o amor, a rejeição, a perda, a conquista...a vida é colorida...não é uma linha contínua...tudo passa, tudo volta com outra forma, com outro cheiro, com outra intensidade... os poetas não são grandes companheiros...vivem no seu mundo... devem ser admirados, lidos, ouvidos, falados... a vida não é poesia... uma mulher não precisa de um poeta ao seu lado... mas precisa de o sentir para viver feliz.