lembras-te quando eu era pouco maior que o muro do quintal e vestia um maillot cor-de-rosa? não ia às aulas de inglês, no colégio, para ir às de ballet. a professora pedia-nos que usássemos maillots pretos, mas eu sempre gostei mais do cor-de-rosa. as collans e as sapatilhas com um elástico de enrolar à volta do tornozelo... era na altura em que dançava muito e era feliz assim; não me cansava e o ar nunca me faltava. ficava sempre à frente porque sabia todas as coreografias e, assim, as meninas que não sabiam tão bem podiam ir olhando e imitar.
olhava para as sapatilhas de pontas da professora e pensava se algum dia poderia usá-las. sei agora que não. todas as miúdas, em determinada altura da vida, sonham ser bailarinas, não é? ou, pelo menos, saber dançar sem pisar o parceiro, não vá o príncipe aparecer-nos sem estarmos à espera e puxar-nos para dançar. pelo menos, costumava ser assim com as princesas da Disney.
mais tarde, passei a comer romãs deitada na tijoleira da sala. cortava a franja rente, com a tesoura de cortar papel, porque estava farta de ser uma menininha pequenininha; pff, só as meninas pequeninas poderiam usar franja. quando a minha mãe saía de casa, ia buscar a minha roupa preferida à máquina de lavar e vestia-a mesmo suja; ou aquela, ou nenhuma.
já sem franja, parece-me, fiz uma amiga. uma amiga das que valem muito. uma amiga, no verdadeiro significado da palavra. não sei como aconteceu, porque nem éramos da mesma sala... ela era um riso só. um riso, era ela. acho que era feliz, porque parecia-me que não sabia o que era, por exemplo, acordar mal-disposta. tinha sempre um sorriso nos lábios, e era contagioso. dizia parvoíces que me faziam rir até a barriga doer ou me caírem lágrimas dos olhos. éramos miúdas e inseparáveis. havia uma ligação mágica entre nós, que nunca voltei a sentir com mais ninguém. brincávamos ao nada, que era rir das coisas mínimas. acredito que foram as minhas melhores gargalhadas, de sempre. ela fazia-me cócegas, ouvia-me quando estava triste e fazíamos teatros das histórias dos livros de BD que líamos. ela era meia louca, e duvido que alguma vez tenha passado pela fase se sonhar ser bailarina... a minha amiga tinha oito anos e dizia que queria ser professora de educação física, quando fosse grande. eu dizia que queria ser pintora.
tão triste como um último dia de Verão, foi o dia em que nos separámos... mas não havia nada a fazer, chega sempre a hora de mudar de escola. dissemos juntas adeus ao sítio que nos tinha juntado - Arte Mágica, curioso... - e trocámos números de telefone e moradas. mal sabíamos escrever sem dar erros ortográficos, mas passámos todos os anos seguintes, até entrarmos na adolescência, a escrever uma à outra.
às vezes, ainda nos encontramos. está igualzinha à amiga que fiz com oito anos. o ar de bem com o mundo é o mesmo, e o olhar também. é quase grande e, passados mais de dez anos, está a estudar para ser professora de educação física.
eu é que já não vou ser pintora. o mundo trocou-me os planos e os riscos da tela. ouvi sempre primeiro o mundo, em vez de me ouvir a mim. tomei todas as opiniões e conselhos como importantes, e esqueci a minha vontade - é um erro terrível.
os anos passam e há coisas que não mudam. continuo a ouvir-me quase em último plano e a deliciar-me com os meus velhinhos filmes da Disney, como quando ainda nadava de braçadeiras. todas as personagens me recebem sempre como no primeiro dia, o que me deixa com uma leve nostalgia. a pequena sereia continua com uma farta cabeleira ruiva e não envelheceu nem um dia; o simba continua simpático, leal e justo: o rei que todos desejam; a pocahontas ainda anda descalça pela floresta e a avó willow está velhinha há anos, mas ainda se aguenta bem; o pinóquio esqueceu de vez o que é mentir; e a branca de neve continua a viver feliz com o seu príncipe, e ainda diz que é para sempre. vejo que nada mudou, com nenhum deles, e suspiro aliviada.
cá fora, já estão todos envelhecidos. metade já se foi e a outra metade continua a lembrar a Ritinha com o mesmo sorriso no olhar de quando eu ainda mal sabia falar. o mundo está velho e eu ainda não cresci. ainda não aprendi a política, as acções, os investimentos, as contas por pagar, os seguros, as rugas e as guerras. ainda não aprendi a virar a cara e a não acreditar que três quartos dos sonhos de infância morrem à deriva. ainda estou na idade dos excessos, das viagens a cada mês, dos vinte cêntimos no bolso, do ritmo no corpo, da paz e do amor, da roupa amarrotada e dum quero-lá-saber atirado ao ar, do rabo no chão, do cabelo por pentear, do quarto por arrumar, da música alta no rádio do carro, das noites perdidas mas estreladas, do fumo e do desejo, dos improvisos, dos planos à última da hora, das tendas mal montadas e das estradas sem fim à vista.
ainda quero ser o céu... sem precisar de chão.
o mundo pede-me que guarde as memórias bem escondidas - e os sonhos, já agora - e que aprenda a ser grande. o peso das decisões e das responsabilidades.
eu só sei que, quando for grande, quero ter um maillot cor-de-rosa e uma amiga que me faça rir até mais não poder ser. o resto... ainda estou por descobrir.
olhava para as sapatilhas de pontas da professora e pensava se algum dia poderia usá-las. sei agora que não. todas as miúdas, em determinada altura da vida, sonham ser bailarinas, não é? ou, pelo menos, saber dançar sem pisar o parceiro, não vá o príncipe aparecer-nos sem estarmos à espera e puxar-nos para dançar. pelo menos, costumava ser assim com as princesas da Disney.
mais tarde, passei a comer romãs deitada na tijoleira da sala. cortava a franja rente, com a tesoura de cortar papel, porque estava farta de ser uma menininha pequenininha; pff, só as meninas pequeninas poderiam usar franja. quando a minha mãe saía de casa, ia buscar a minha roupa preferida à máquina de lavar e vestia-a mesmo suja; ou aquela, ou nenhuma.
já sem franja, parece-me, fiz uma amiga. uma amiga das que valem muito. uma amiga, no verdadeiro significado da palavra. não sei como aconteceu, porque nem éramos da mesma sala... ela era um riso só. um riso, era ela. acho que era feliz, porque parecia-me que não sabia o que era, por exemplo, acordar mal-disposta. tinha sempre um sorriso nos lábios, e era contagioso. dizia parvoíces que me faziam rir até a barriga doer ou me caírem lágrimas dos olhos. éramos miúdas e inseparáveis. havia uma ligação mágica entre nós, que nunca voltei a sentir com mais ninguém. brincávamos ao nada, que era rir das coisas mínimas. acredito que foram as minhas melhores gargalhadas, de sempre. ela fazia-me cócegas, ouvia-me quando estava triste e fazíamos teatros das histórias dos livros de BD que líamos. ela era meia louca, e duvido que alguma vez tenha passado pela fase se sonhar ser bailarina... a minha amiga tinha oito anos e dizia que queria ser professora de educação física, quando fosse grande. eu dizia que queria ser pintora.
tão triste como um último dia de Verão, foi o dia em que nos separámos... mas não havia nada a fazer, chega sempre a hora de mudar de escola. dissemos juntas adeus ao sítio que nos tinha juntado - Arte Mágica, curioso... - e trocámos números de telefone e moradas. mal sabíamos escrever sem dar erros ortográficos, mas passámos todos os anos seguintes, até entrarmos na adolescência, a escrever uma à outra.
às vezes, ainda nos encontramos. está igualzinha à amiga que fiz com oito anos. o ar de bem com o mundo é o mesmo, e o olhar também. é quase grande e, passados mais de dez anos, está a estudar para ser professora de educação física.
eu é que já não vou ser pintora. o mundo trocou-me os planos e os riscos da tela. ouvi sempre primeiro o mundo, em vez de me ouvir a mim. tomei todas as opiniões e conselhos como importantes, e esqueci a minha vontade - é um erro terrível.
os anos passam e há coisas que não mudam. continuo a ouvir-me quase em último plano e a deliciar-me com os meus velhinhos filmes da Disney, como quando ainda nadava de braçadeiras. todas as personagens me recebem sempre como no primeiro dia, o que me deixa com uma leve nostalgia. a pequena sereia continua com uma farta cabeleira ruiva e não envelheceu nem um dia; o simba continua simpático, leal e justo: o rei que todos desejam; a pocahontas ainda anda descalça pela floresta e a avó willow está velhinha há anos, mas ainda se aguenta bem; o pinóquio esqueceu de vez o que é mentir; e a branca de neve continua a viver feliz com o seu príncipe, e ainda diz que é para sempre. vejo que nada mudou, com nenhum deles, e suspiro aliviada.
cá fora, já estão todos envelhecidos. metade já se foi e a outra metade continua a lembrar a Ritinha com o mesmo sorriso no olhar de quando eu ainda mal sabia falar. o mundo está velho e eu ainda não cresci. ainda não aprendi a política, as acções, os investimentos, as contas por pagar, os seguros, as rugas e as guerras. ainda não aprendi a virar a cara e a não acreditar que três quartos dos sonhos de infância morrem à deriva. ainda estou na idade dos excessos, das viagens a cada mês, dos vinte cêntimos no bolso, do ritmo no corpo, da paz e do amor, da roupa amarrotada e dum quero-lá-saber atirado ao ar, do rabo no chão, do cabelo por pentear, do quarto por arrumar, da música alta no rádio do carro, das noites perdidas mas estreladas, do fumo e do desejo, dos improvisos, dos planos à última da hora, das tendas mal montadas e das estradas sem fim à vista.
ainda quero ser o céu... sem precisar de chão.
o mundo pede-me que guarde as memórias bem escondidas - e os sonhos, já agora - e que aprenda a ser grande. o peso das decisões e das responsabilidades.
eu só sei que, quando for grande, quero ter um maillot cor-de-rosa e uma amiga que me faça rir até mais não poder ser. o resto... ainda estou por descobrir.