12 dezembro 2006

' Pai, às vezes. '

Foste aquele que eu mais amei, em tempos.
Fui aquela que tu mais amaste... em tempos.
Revoltaste-te contra toda a família, toda a vida. Amavas, e continuas a amar, cada um deles; mas nunca soubeste dá-lo a entender a ninguém. Eras (és) um revoltado. Cheio de traumas de infância que não te deixam ser bonzinho e descansado. O álcool e o cigarro foram só uma bengala que tu pensaste que te ajudaria a caminhar pela Vida. Transformaram-se na pior arma: contra ti mesmo, e contra todos os que viviam à tua volta. Felizmente, passados anos e anos e anos, conseguiste largá-las e começar a dar os primeiros passos sozinho, como um autêntico bebé. Sem vícios ou essências que ajudem a fazer decorrer a Vida, a suportá-la anestesiado.
Quando eu tentava desculpar os teus erros com a história da infância e da revolta haviam sempre vozes a dizerem-me que ignorar a Maldade que mora num coração não é a melhor táctica. Mas eu nunca soube acreditar em Pessoas Más... Achei sempre que o mundo era feito de gente boazinha que, de vez em quando, se portava mal. Mais nada. E deve ser por isto que, ainda hoje, me chamam de ingénua...
Ouço a voz da Mãe a contar tantas vezes a mesma história: vínhamos no avião, de regresso dos Açores, e eu disse-lhe 'Sabes Mãe, eu acho que agora já consigo gostar tanto de ti como do Pai...'. Tinha seis anos. E gostava mais de ti do que de qualquer outra pessoa, apesar de te ver seres mau, tantas vezes.
Fui sempre a mais quieta e calada. As educadoras perguntavam vezes sem conta, à Mãe, se estava tudo bem. Todos os meninos do colégio brincavam e corriam dum lado para o outro, e eu só queria ficar sozinha num canto da sala ou do recreio. Eu lembro-me tão bem...
A Mãe foi sempre a mãe e o pai da casa. E o Mano, anos mais tarde, transformou-se no pai, também. Tão crescido, tão bonito... Tão humano.
As pessoas que te conheciam bem diziam 'A filha é a única pessoa de quem ele realmente gosta...'. Eu não achava bonito, mas não deixava de me sentir feliz.
Fomo-nos perdendo, com o passar dos anos. Tu já não és o mesmo, e eu... muito menos. (Embora, muitas vezes, me continue a sentir a mesma menina desdentada que te pedia colo.)
Contrariei-te em muitas coisas, por as saber erradas. Parti sempre de coração apertado, cada vez que fechei a porta e te deixei sozinho e a chorar, ao mesmo tempo que me pedias para ficar. Defendi sempre a Mãe e o Mano o mais que pude. A Mãe defendeu-me sempre a mim e ao Mano o mais que conseguiu. O Mano continua a defender-nos sempre o mais que pode, e ainda mais um bocadinho. E eu já nem sou capaz de te defender a ti...
És tão nada... sabes? E tanto, ao mesmo tanto. Com tanto para contar, para ensinar. És inteligente e sabe-lo bem. Usas-te disso, tantas vezes... Eu já quis muito ouvir todas as tuas histórias e aventuras, mas cansei-me de esperar.
A única pessoa que realmente respeitavas – o teu Pai – já nos deixou e tens motivos para te orgulhar dele. Como eu não tenho teus.
Já não me recordo sequer da última vez que rimos juntos... Mas recordo-me da última vez que falámos. A última frase foi minha: 'A minha vontade é a de nunca mais olhar para a tua cara'. A minha voz tremia e quase que me falhava, e tu fazias um ar de indignação. Foi há sete meses atrás.
A minha vontade mantém-se a mesma, mas o coração já começa a querer ceder, de vez em quando. Nessas alturas, eu faço questão de me relembrar de tudo e digo 'não, desta vez não'.
A Mãe, às vezes, descai-se. Diz 'és tal e qual o teu Pai...' e, depois, repara no que disse e arrepende-se. Não faz por mal...
Mas é. Somos tão parecidos que dói. E o meu maior medo é, um dia, vir a ser tão má mãe como tu foste pai.
A Tia Rosa, quando me telefona, pergunta por ti e eu digo que deves estar bem... Ela acha que já passou muito tempo e que devia deixar-me de rancores. E não é a única com essa opinião. Mas acho que já não consigo lidar de outra forma com isto.
Pela primeira vez, faço de conta que me estou a borrifar para ti. Podes gritar, morder, rasgar, morrer... que me é indiferente. Faço de conta que estou bem, sem ti, e tu nem chegas a saber que não estou.
Ás vezes, acho que foste para a cova com o teu pai. Morreste com ele, e não choraste uma única lágrima. Eu queria abraçar-te e trazer-te de volta, mas já não sou capaz. Na verdade, acho que nunca fui. Tu é que, antigamente, te davas ao luxo de representar um bocadinho melhor...

A tua tristeza anda-te estampada no rosto. Mas não penses que a minha não existe... Eu é que teimo em escondê-la de ti, para pensares que já nada vindo de ti me atinge.

É que eu queria amar-te tanto, Pai...
Mas eu acho que já não consigo.






Entrei em casa pela porta das traseiras e tu estavas na cozinha. Quando desviei a cortina tinha-te à minha frente e soltaste um 'Bom dia!?', que me apanhou completamente desprevenida. Olhei-te indignada e virei-te as costas, sem dizer uma única palavra.
Enquanto subia as escadas e entrava no quarto, senti o coração a comprimir-se dentro do peito. São os piores momentos... Teres de negar alguém que amas. Sobrepor a razão à emoção. Senti-me a mais Má das Pessoas à face da Terra e fui meter-me debaixo do chuveiro, onde as lágrimas se misturaram com a água bem quente que não parou mais de correr.

17 comentários:

Anónimo disse...

Eu acho que isto é íntimo demais, nunca vi ninguém escrever da forma como tu escreves. E por isso, acho que não sou capaz de dizer alguma coisa de jeito ou sequer se o deva fazer. Mas sabes, sempre achei que a razão nunca se deve sobrepor a emoção. Sim, às vezes pode ser o mais indicado a fazer, mas... Não sei. Não me adianto mais, como já disse, isto é demasiado pessoal.

Por isso, amor. Muito Amor.

Anónimo disse...

Isto sim, Rita, faz-me confusão. Porque já escrevi milhares de coisas neste género.
É arrepiante, parece que estás a falar da mesma pessoa...
Só que eu, estúpida, acabei por ceder mais uma vez, apesar de saber que desta vez não devia ter perdoado.
Nunca consigo sobrepôr a razão à emoção...

(e eu que até lhe chamo pai em part-time...)


*

Anónimo disse...

Nunca, nunca mesmo me vou esquecer deste éRre.

Anónimo disse...

Faças o que fizeres, não olhes para trás...

Lúcia Isabel Ribeiro Sousa disse...

é provavelmente o texto mais bonito que ja li... Dá para ver que vem la d dentro, daquele lugar que ainda ninguem descobriu onde fica.

Pai é pai .. so consigo dizer isto. E o meu esta tao longe! =/

Ana disse...

a razão é uma merda. e nós somos uma merda ainda maior por não conseguirmos ou querermos viver sem ela.

os pais são todos assim. não fazem por mal, penso.

oh Rita, tu encantas qualquer um com as tuas palavras.
um beijo!

Su(sana) disse...

Não é agradável ler um texto destes e dói um bocadinho a alma em cada parágrafo que se lê, escreves bem e de tão bem que escreves sente-se aquilo que acho que também tu sentes ao escrever. Apesar de doer, já devia saber que a vida nunca foi, não é e não será como as pessoas querem que ela seja e por isso as pessoas são o espelho daquilo que as suas vidas são, humm ok, se não são sempre, na maioria acho que sim.

Não sei comentar bem isto, é-me desconhecida tal situação, é daquele tipo de situações que de tão íntimas e fortes que são tornam-se confusas e difíceis de comentar para alguém que não as conhece verdadeiramente, então deixo-te um beijo e um abraço envolvido em força para que enfrentes da melhor maneira as barreiras que a vida te mostra, desta forma substituo as palavras que podiam pecar.

[*]

fi. disse...

se há palavras para descrever isto digam-me por favor.

Rita, cada palavra que escreveste toma o meu coração de assalto.
Escreves-te algo bastante pesoal.

Nem sei que diga....
Acho que vou para o chuveiro também.

beijinho mágico*

maria disse...

Vim mesmo! aliás, venho sempre que dizes que estás aqui.

Olha, rita, tenho saudades tuas! Pronto. Essa é que é essa! saudades tuas assim que chego ao fim de mais um texto teu deixado aqui, assim.

Já pensei que tinhas uma imaginação fabulosa. Já pensei que devias ler e inventar narrativas fantásticas, desde o terrível ao magnificamente doce, que escreves tão tremendamente bem que... é isso, qualquer desespero em ti, a vencer, só se te fosse de todo impossível escrever...
Que sei que sempre que escreves deitas de ti cá p'ra fora e o coração volta a ganhar um espacinho mais para bater a toda a hora!

Mais? dizer mais o quê?
Que Gosto de ti, Rita!
beijinho :)

Anónimo disse...

Coisas tão tuas. Sê forte, querida.
Perdoa-me esta escassez de palavras. Beijinho doce.

Mariana disse...

É revoltante quando as que pessoas que deviam ser o exemplo a seguir, simplesmente se tornam num exemplo a não seguir... Quando o que deveria ser um poço de afecto, se torna num poço de mágoa...

Mas é teu pai. Deve-lo amar e apoiar incondicionalmente, mesmo que ele não te demonstre o mais exíguo sentimento ou apoio.

Tens de tentar ser sempre melhor que os outros, nunca responder na mesma moeda (ou até pior)... Só iras sair a ganhar.

Beijinho.

Lord of Erewhon disse...

__________FELIZ NATAL__________
________E O ORGASMO GLOBAL_____

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N disse...

Estou boquiaberta!

Não sei se o que escreves é tão real quanto parece, mas a tua escrita é tão intensa e verdadeira que me deixo embrenhar nela e achar que estou a ouvir a narradora da tua história. Chego a misturar-te com ela, sem te conhecer e sem saber se são realmente a mesma pessoa. É realmente inquietante, esta história, e não deixa, obviamente de ser triste. Porque é realmente duro e difícil virar as costas a quem (mais) amamos e porque às vezes tem mesmo que ser. E depois mistura-se a coragem e a cobardia; por vezes achamos que foi o mais difícil e heróico que podiamos ter feito, ouras achamos simplesmente que fugimos. E não há resposta.
Mais uma vez, querida R., a tua escrita surpreende-me, inspira-me e dps deita-me num chinelo. E estou a elogiar-te, claro!

Um óptimo Natal para ti :)

Beijinhos,

Anónimo disse...

Habitua-te, Rita.


Eventualmente, deixa de doer...

Anónimo disse...

Por mais indignada que estejas, nunca lhe vires as costas. eu fiz o mesmo com o meu pai, e depois arrependi-me, porque tempos depois ele faleceu. só aí me dei conta do quanto gostava dele. cinco anos passaram desde que ele partiu e eu ainda choro a falta que me faz, apesar de ser o que era.
também se refugiava no álcool.
só sentimos a falta daqueles de quem gostamos quando eles se vão emboram e nunca mais voltam...

Anónimo disse...

Olá Rita. A história que contas sobre o teu pai é sofrida e fascinante pelos pormenores, tudo parece real, mas, para mim é comovente.
Eu também sou pai! E tenho um filho(13)com quem tenho uma optima relação, após um interregno de três anos porque as cabeças também se fazem; e uma filha(17)com quem não tenho nenhuma relação, nem sequer telefónica. Carinho, compreensão, ajuda, partilha e muita cumplicidade foi aquilo que sempre lhe conseguir dar. Simplesmente, só dei e deixei de receber, mas, continuei a dar e continuei...e continuei a dar! Os filhos quando querem sabem precisamente como devem fazer para que o sofrimento dos pais aumente. Desculpa-me este desabafo. A ausencia, às vezes pode ser suprida e pelo facto de não o queremos simplesmemte não é! Desculpa Rita, esta minha necessidade de escrever sobre aquilo que escreveste. O meu caso é muito diferente. Rita, desejo que alcances tudo aquilo porque lutas, ao longo da tua vida. Sê feliz!

Anónimo disse...

Excelente ! Sou só uma simples miúda de 13 anos e adorei este texto.. é fascinante, comovente, emotivo, muito triste..
Também custumo escrever.. mas nada que se compare com isto!
Sinto mesmo a necessidade de desabafar, de me exprimir e faço isso quando escrevo.. Simplesmente gosto mais de escrever poemas! =)

Adorei, continua assim..
Beijinhos grandes*