26 agosto 2008

Plastic stars (in our private galaxy).


Já o vejo ao portão de casa, à minha espera. Mal eu paro, ele apressa-se em fugir para dentro do carro. Faz o mesmo sorriso de sempre, dá-me um beijo na bochecha e começa a desbobinar as mil novidades que tem sempre por contar.
Fico a ouvi-lo falar da miúda a quem se deixou prender e deixo-me enternecer pela forma como me diz, com o mesmo sorriso da chegada: sabes, acho que finalmente, desta vez, acertei.
Já nem sei se acredito no amor dos homens (ou não consiste tudo, apenas, num interesse carnal, num aconchego de almas?), mas deixo-me iludir, porque, afinal, é essa ilusão que me faz acalentar o espírito.
Olho-o com atenção e vejo-o, agora, maior que eu. O meu amigo de infância tornou-se, quase sem eu dar conta, numa personagem de filme. Tem o dom da oratória, mas ignora-o e enrola mais um cigarro.
Vamos a um bar qualquer e ele bebe do meu copo. Fala aos outros de assuntos que eu já o ouvi falar há uma semana atrás, mas acrescenta sempre algum pormenor esquecido, o que lhe torna o discurso meio aliciante. Traz uma indiferença para com o mundo exterior pregada à pele e, ao mesmo tempo, uma simpatia insólita para quem se aproxima do nosso.

Não tocamos, juntos, em livros desde que encerrámos a época de exames; a poesia de Pessoa fá-lo deprimir, a ponto de lhe causar pensamentos pouco sãos.
Fixo-o e não consigo perceber há quantas noites não dorme o suficiente ou se passou o dia inteiro deitado. Parece que, às vezes, vive num estado de embriaguez que dá vontade de nos embriagarmos, nós próprios, nele.
As minhas noites são sempre mais protegidas quando o tenho ao meu lado, porque se me der para fugir, sei que ele não fica preso ao chão, a ver-me afastar. E porque temos sempre uma praia, juntos. Se não a tivermos logo ali, encontramo-la sempre, nem que seja só de manhã.
E, entre um ajeitar do cachecol que ele traz sempre ao pescoço e os acordes duma música qualquer, acabamos deitados na areia, a falar de coisas sem nexo. E eu não preciso de mais nada, um céu estrelado e um amigo bastam-me. Nem fotografias temos - o meu olhar fotográfico vale muito mais; não desfigura nem banaliza os ambientes.
Mas isto é só até, algures na madrugada, ele me dizer a rir: hey, vamos ao castelo!
Desaparecemos de mãos dadas e quando nos voltam a encontrar, costumamos estar perdidos, a afogar numa garrafa qualquer, o nosso cansaço da busca e a nossa tristeza de só termos encontrado um castelo de saudade.




(Tudo o resto é uma questão de dramatismo; na realidade, ninguém me sabe roubar o sorriso.)

16 agosto 2008

Home is where the heart is.

Olho o Rossio inteiro, com um arrepio a correr-me dentro das costas da camisola. É Verão, mas hoje o dia resolveu nascer menos brilhante.
O meu coração veio a flutuar desde lá de baixo, quando me deixei ancorar nesta margem do rio. Atravessou o Cais, deu uma volta pelo Chiado, para, finalmente, aterrar aqui.
Fico meia paralisada e o frenesim habitual, como que em solidariedade, até me parece acalmar. Consome-me já uma saudade melancólica da imagem que existe à minha volta, como a falta que se sente de alguém que se sabe que se vai perder, mesmo ainda não o tendo, de facto, perdido e ainda o tendo nos braços.
Acordo deste sentimentalismo solitário com a mão dela a apertar a minha. Já quase a esquecia ao meu lado, não fosse um calor protector e invisível - aos olhos - ter-me sempre aconchegado, desde o início da caminhada.
Olho para o lado e vejo-a com o cabelo cor-de-cenoura e os olhos muito verdes e brilhantes dos quinze anos, quando fugiu do remoto vale da infância para experimentar as ruelas de Alfama. É, de repente, a menina risonha desses tempos, com mais mil sardas que eu a saltarem-lhe no rosto. Ri como se nada de demasiado grave houvesse no mundo e nunca, ainda, lhe tivessem feito mal, nem receasse poderem vir a calar-lhe esse riso.
Eu fico emocionada a olhá-la e não consigo evitar rir-me também. E somos, então, duas miúdas a pairar no meio da praça, que riem alheias aos olhares e aos cochichos.
Quando a abraço, as minhas lágrimas são um amor gigante a cair-me dos olhos. E é assim que deixamos acalmar o riso, para descansarmos no ombro uma da outra.
Não sei quanto tempo passou, nem se foi sonho ou realidade, mas quando desfazemos esse abraço, eu olho-a e só vejo um rosto enrugado. Mas, ao concentrar-me melhor, constato que a miúda de quinze anos continua a morar-lhe no fundo dos olhos.
Na outra ponta da península, sorri-nos o último prolongamento deste amor e eu sei que, aqui, a distância nunca será nada para o que une as almas.
Olho o Rossio inteiro, agora com um sorriso mais descontraído, porque, lembro-me, a minha casa não é chão. E recomeço a caminhar, não sei bem para que direcção, levando uma das minhas duas moradas ao meu lado, segurando a minha mão, e a outra no regaço, bem junto ao coração.