30 outubro 2005

Lágrimas.


Está a chover. Está a chover tanto... E eu não consigo parar de pensar que são as tuas lágrimas que caem do céu. E eu não consigo parar de pensar que és tu, sentado naquela nuvem grande e cinzenta, a chorar...
Guardo cada gota de água que cai do céu naquele frasquinho de vidro, onde ficava guardada a compota de morango. Como se te limpasse as lágrimas do rosto... Como se as visse crescerem-te nos olhos cansados e as matasse, antes de as deixar suicidarem-se algures pelo teu pescoço.
Já tenho cinco frascos cheios de gotas de água. Cinco. E não pára de chover. E não vai parar de chover... A nuvem grande e cinzenta está cada vez mais escura... Cinco frascos cheios de lágrimas. Tuas. E não vais ser capaz de parar de chorar...
Já só tenho mais um. Um último frasco de vidro, onde guardava a compota de morango. Sei que o vais encher de lágrimas. E, quando ele começar a transbordar de gotinhas brilhantes, não terei mais frasquinhos de vidro. Já não serei capaz de te guardar. De te colar, de novo. Vou deixar-te desfazeres-te em gotas de água. Geladas. E brilhantes.
Vão cair no chão e perder-se de Nós. Vais perder-te. Eu vou perder-te. A terra vai engoli-las. A terra vai engolir-te... E os meus seis frasquinhos de vidro onde, noutros tempos, guardei compota de morango, não significarão nada.
Seis fracos. E chove tanto que precisaria de mais seis. E mais seis. E mais seis... Para te ter por inteiro. Para, mais tarde, tos entregar e dizer: ‘toma, estás aqui’.
Tenho as mãos molhadas. De ti. Diluis-te em mim. Gelado. Como se nunca sequer tivesses sido a parte mais quente de mim... Em mim.
Chove tanto... Dentro e fora de Nós. E a dimensão de todas estas gotas de água a caírem do céu é igual ao que sinto por ti. Grande demais para caber em seis frascos de vidro, onde se guardava compota de morango. Grande demais para me caber no peito...
Um dia, também eu me hei-de desfazer em gotinhas brilhantes. Mas quentes. Um dia, também o que sinto por Nós será grande demais para me caber no coração e irá transbordar para fora dele. E, nesse dia, a nuvem que está hoje cinzenta ficará cor-de-rosa.
Está a chover. Está a chover tanto...

Pára de chorar, meu amor. Já morreste demais por hoje. *

26 outubro 2005

Perdi-me. No Branco. Sem fim.

Perdi-me num branco sem fim.
No branco duma folha de papel. Escondida no branco dum envelope, dobrado. Perdido no branco duns lençóis amarrotados. Entre o branco de quatro paredes, com ouvidos e vozes. (Pilares do branco do tecto, do branco dum céu... Sem estrelas nem sonhos.)
Perdi-me num branco.
De bom. E de mau.
De beijos e bofetadas.
Pancadas psicológicas que fazem sangrar. Dum vermelho de vida. Ou de morte.
Perdi-me no branco duns olhos baços. Baços e mortos. Mortos e frios... Duma apatia contagiante. Duma apatia sufocante.
Perdi-me num branco sem fim.
Duma mão branca e fria, que me tapa os olhos, todas as noites. O branco duma mão. Pequena e gelada.
Logo a mim... Logo eu... Que me tinha habituado a umas mãos grandes. E quentes. E quentes. E quentes...
Perdi-me no branco de um labirinto. Feito de muralhas cor de nada. Rodeadas dum branco espalhado em flores. Cobertas do branco dum orvalho matinal.
Perdi-me. Da tua mão. Do teu quente. Do teu corpo, feito de reflexos brilhantes e coloridos em noites escuras.
Perdi-me num sonho. Branco. Apagado. Pelo branco duma borracha que apaga sonhos, em segundos. Que apaga sorrisos. Com motivos e vontades.
Perdi-me num branco sem fim.
Um branco que consome. Que engole vida e a cospe logo a seguir, sem ligar importância.
Perdi-me. Branca. Fria. Num nada qualquer.
Logo eu... Logo a mim... Que só queria perder-me em ti.

Oh, meu amor... Onde está o branco em Ti?



/me on Explosions in the Sky

14 outubro 2005

Sou um arco-íris a preto e branco.

- Não te devias vestir assim toda de preto.
- Porquê?
- És o arco-íris, lembras-te...?
- Sim, a preto e branco...

05 outubro 2005

Branco branco branco

Ele aparece, sempre, quando já estão todos a dormir. Abre a porta e entra, sem pedir licença. Talvez ele saiba como gosto de rugir um ‘não’ enorme, a quem se põe aos murros contra a porta calando a música que sai das paredes (brancas brancas brancas). Então, nunca bate. Abre-a, entra e volta a fechá-la. E eu nem sei como é que ele consegue... Porque acho que nunca dei nenhuma chave daquela porta a ninguém. Mas ele tem uma. E gosta de dar voltinhas com a chave na porta, para a trancar, quando já está do lado de cá. E depois guarda-a num bolso pequenino, escondido algures num casaco duma tonalidade triste de verde...
Vem sempre com uma folha de papel, na mão (branca branca branca). Mete-a num lugar qualquer do chão e abre a gaveta onde está guardada uma caixa de lápis de cera. Da primeira vez que veio, demorou muito tempo a encontrá-la. Abriu e fechou todas as gavetas até encontrar a caixa. Desarrumou tudo e nem pareceu muito preocupado. Agora, já sabe onde a guardo. E eu até já pensei em mudá-la de sítio. Mas ele era capaz de se cansar de brincar às escondidas...
Com a sua folha (branca branca branca) e os meus lápis de cera, ele ocupa um espaço qualquer do chão. Como se este quarto fosse muito mais dele do que meu.
Ele não deve gostar de cadeiras. E eu entendo-o bem... O chão sempre me soube muito melhor.
Quando ele vem, eu também costumo estar sentada no chão. Com os olhos pregados a um céu pintado de branco (branco branco branco...)...
Ficamos os dois no chão. Que me parece ficar, sempre, mais quente quando ele começa a desenhar...
Ele é pequenino e tem sardas no nariz. Acho que tem o cabelo meio ruivo. Não tenho a certeza... A luz já é sempre pouca, quando ele vem.
Não fala. E a música pára, enquanto ele agarra nos lápis e os pressiona, com força, contra a folha.
Quando acaba, levanta-se e guarda a caixa com os lápis de cera na gaveta. A folha... deixa-a no chão.
Tira a chave do bolso pequenino e abre a porta. Vai-se embora e eu, do lado de cá, ouço a chave a dar voltinhas, do lado de lá.
Entra e sai. Calado. Sempre.
As paredes (brancas brancas brancas) estão a ficar revestidas por desenhos que um menino pequenino faz e deixa no meu chão, todas as noites. Arco-íris e nuvens cô-de-rosa... Com um menino igual a ele e uma menina (igual a mim?) de mãos dadas, na relva.
Esta noite, ele só utilizou o lápis vermelho. No meio naquele branco todo da folha, só fez um pontinho vermelho. Um ponto. Quente... Saiu e eu não ouvi a chave às voltinhas, do outro lado. A porta ficou aberta... E eu não sei se o que oiço é a voz dele a chamar-me...